Leia ouvindo: Elis Regina – Maria, Maria

São 5:40h da manhã. Enquanto tomo meu café, ainda de pijama penso na roupa do treino de hoje. Preciso estar às 6h no Ibiraquera, e como já deve imaginar, moro perto o suficiente para ir à pé. Como não tenho cia, vou sozinha mesmo. Ainda é inverno, e nesse horário o dia não amanheceu direito, está escuro. O caminho até o parque é pela avenida mais movimentada e iluminada.

O relato acima poderia ser de qualquer pessoa que tem a corrida como esporte, mas alguns trechos deixam claro que é uma mulher. Fiz questão de não detalhá-los para trazer algumas reflexões. O relato acima é de praxe durante conversas com amigos homens sobre assédio. Muitos homens não imaginam, mas o simples “sair para correr”, dá um trabalho e tanto para mulheres.

“e ainda de pijama, já penso na roupa do treino de hoje.” Pois é, uma parte das mulheres pode não ter pensado nisso, assim como muitos homens jamais imaginam que a roupa de treino facilmente “justifica” o assédio. Uma calça legging, o shorts curto, shorts-saia, bermuda, enfim, só o fato de ter uma peça colada ao corpo é querer “chamar” atenção. De top então, atenção em dobro.

Apesar da constante desconstrução de pensamento, mulheres ainda precisam se preocupar com a roupa que usarão para treinar. Se a ida for à pé então, o cuidado é redobrado. Geralmente a calça, shorts ou bermuda, sempre vem acompanhado de uma blusa amarrada na cintura para não chamar “tanta” atenção.

Será mesmo que a culpa é da roupa que você usa para correr ou do homem que te olha/provoca/toca durante o treino de corrida? Se você ainda pensa que a roupa que usa é motivador para assédio, trago o óbvio: não é. Você não é uma “vagabunda” por usar shorts curto para correr em pleno verão. O problema está no homem que te olha com desejo e pior que isso, te assedia por achar que você estava pedindo isso através da sua roupa. Roupa não é recado para macho escroto!

“Como não tenho cia, vou sozinha mesmo.” Dependendo do volume de treino, a corrida acaba sendo ainda mais solitária. Não é todo mundo que vai acompanhar um treino de 10, 15 ou 5km. E ai que sozinha, a mulher corredora fica ainda mais vulnerável ao assédio.

fotografia: arquivo pessoal Gisele Trento

“Ainda é inverno, e nesse horário o dia não amanheceu direito, está escuro.” Se fosse um homem, muito provavelmente não teria falado sobre o assunto, já que não há qualquer tipo de preocupação em sair para correr no “escuro”, mas a mulher precisa se preocupar com mais esse item. Sozinha e saindo na rua antes de amanhecer, é claro que se acontecer alguma coisa ela será culpada, pelos outros e por ela mesma. Por que novamente, ela pediu.

“O caminho até o parque é pela avenida mais movimentada e iluminada.” Se fosse um homem, ele provavelmente iria por qualquer caminho, o fato da avenida ser movimentada não seria de caso pensado. A iluminação talvez. A mulher já pensa no caminho mais movimentado e iluminado, porque se ainda assim qualquer coisa acontecer, ela tem para quem pedir ajuda.

Ufa, agora sim ela pode correr em paz – ou quase! Não é por que você está dentro do Ibiraquera que nada vai acontecer. O assédio acompanha as mulheres por todos os lugares, se o assédio pode acontecer dentro de casa, imagina fora dela?

Os recorrentes assédios vividos durante os treinos de corrida, fizeram Giseli Trento criar um perfil no instagram chamado: @soquerotreinar. Ali, além de empoderamento feminino, Gisele criou rede de apoio e denúncias para casos de assédio durante treinos. Fiz uma entrevista com ela para o ESPN W, você pode ler aqui. Falamos do projeto e da rede de apoio criada com os depoimentos recebidos.

Ainda existem mulheres, e milhares de homens, que acham exagero, duvidam do ocorrido e ainda culpam a vítima pela roupa, horário de treino ou local. Tanto o trabalho da Giseli no @soquerocorrer, como o meu, aqui no @cotidiano.dela tem como principal objetivo trazer luz para essas sombras sociais e ajudar mais mulheres à praticar o esporte. É inadmissível uma mulher deixar de praticar um esporte por que sofreu assédio e não teve rede de apoio suficiente para ampará-la.

A vida precisa de esporte e a sociedade precisa parar de passar o pano no assédio!

A reflexão é no esporte, mas o esporte muitas vezes imita a vida. Existem milhares de mulheres que acordam muito antes das 5:40h para irem trabalhar. As ruas são igualmente escuras, o bairro não tem tanta – ou nenhuma, segurança, chegar sem qualquer tipo de assédio até o ponto de ônibus é uma vitória, o mesmo acontece nos inúmeros tipos de transporte que pega para chegar até o trabalho.

O direito de ir e vir com segurança é de TODAS as mulheres, assim como ter uma rede de apoio que conforte e cuide da vítima.

E talvez você ainda se pergunte porque precisamos do feminismo. Precisamos do feminismo para garantir a segurança de TODAS as mulheres. Precisamos do feminismo para garantir direitos as vítimas. Precisamos do feminismo para conseguirmos andar em paz na rua. Precisamos do feminismo para mostrar que a sociedade está doente, mas ainda temos cura.

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